Encarnação

Apropriação da Apropriação

Laymert Garcia dos Santos

2018

Nos dizeres de Ottjörg A.C. encarnaçâo é “um projeto do realismo pós-global”. Conhecendo os trabalhos anteriores do artista, tal designação assume, para mim, a continuidade de um processo de mapeamento e de exploração, em diferentes continentes e países, de modos de expressar fragmentos de vida anônima e aparentemente sem importância, que comportam grande carga poética. Indo direto ao ponto: Ottjörg está sempre interessado em captar na vida real um acontecimento qualquer cujo potencial artístico possa ser “isolado” e trabalhado através de uma transfiguração capaz de lhe conferir valor estético. Sua arte funda-se, portanto, na apropriação de um determinado “material” até então imperceptível e na atualização artística de suas virtualidades.

Foi assim em seu projeto Deskxistence, que cartografou os rabiscos das mesas escolares dos adolescentes de Ramallah, Beirute, São Paulo, Nova York, Sarajevo e outras cidades, revelando através deles os desejos e estados de espírito da juventude pós-globalização. E é assim, agora, com encarnaçâo.

O trabalho consiste, sempre, numa incursão surpreendente no mundo da gravura. Com efeito, é de gravura que se trata. Mas nunca de modo convencional. Aqui, as matrizes que imprimem imagens no papel são testículos de bois e de cavalos, ferros em brasa, mãos ensanguentadas carimbando o branco e coagulando os momentos efêmeros de uma prática antiga, e no entanto, muito contemporânea, ainda em uso no Rio Grande do Sul, extremo meridional do Brasil: a castração e marcação do gado e da tropa.
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A dimensão política do trabalho de Ottjörg, trata de um processo de transformação da vida em mercadoria bastante primitivo, precisamente porque demasiado próximo do grau zero da acumulação capitalista. Estamos longe da sofisticação e sutileza das operações de realização do valor no mercado financeiro. Mas, por isso mesmo, seu caráter é exemplar. No silêncio das obras de Ottjörg pulsa, sangra o rito propiciatório do capital.